Minha conversa com Léster
...Hoje - nem dei por mim, mas quando prestei atenção, estava na cozinha tomando uma xícara de café solúvel com leite e conversando com Léster, um cachorrinho gentil e dócil de 08 anos de idade, portanto, experiente. A conversa estava já ficando interessante depois de uns 15 minutos. De repente, eu me perguntei: Será que isso é normal? Veio outra pergunta: mas o que é normal hoje? Talvez a solidão deixe a gente assim: conversando com cachorro, conversando só, ou com paredes. É como se eu fosse aquele carinha da pintura “O Grito”, do norueguês Edvard Munch, expressando solidão e ansiedade, vindas da confusão da existência. Você já viu esse quadro?
...Está tudo tão difícil, que como fazem as mulheres, cortei meu cabelo pra ver se melhorava. Mas me sinto pior, parecendo um pardal gigante de asa torta. Acho que não deveria ter cortado.
...Está tudo tão difícil, que como fazem as mulheres, cortei meu cabelo pra ver se melhorava. Mas me sinto pior, parecendo um pardal gigante de asa torta. Acho que não deveria ter cortado.
...Bem, eu dizia pra Léster sobre as vantagens dele ser um cachorrinho bonitinho. Tem tudo de graça, desfruta do amor de seu dono sem dar nada em troca, a não ser sua agradável companhia. Não tem que passar pelo injusto vestibular. Outro dia, um escritor foi convocado para responder 10 questões do vestibular sobre sua obra. Pasmem, ele não conseguiu responder nenhuma das 10 corretamente, segundo a banca avaliadora. Sem comentários... Enfim, Léster não precisa trabalhar, não tem problemas amorosos, não vive à mercê do despertador, não conhece a velocidade do tempo em sua pele, desconhece o poder e o estrago que faz o desprezo na vida da gente, não quantifica saudade, não sente o peito se partindo em banda pela falta de alguém, não faz comparações e nem comemorações, não sabe de onde a ração vem e nem o que é instinto, não carrega um amor, não faz escolhas. Como dizia Martin Heidegger: “... Temos de fazer escolhas sem nenhuma certeza de seus resultados. Isso gera culpa e angústia...” Léster tem uma vida folgazã por não conhecer a técnica da vida. Ele não sabe que o amor é uma fantasia da qual precisamos diariamente, não sabe que a paixão é transitória, dura umas duzentas horas, mas consome toda esperteza e lucidez da gente, não se importa se sua namoradinha é uma dadeira, não percebe o efeito da banalização do sexo e da ética, não liga para a globalização. Acrescentei: “Poucas desvantagens você tem sendo cachorro, cara! Você não pode, por exemplo, colocar o colchão no chão e dormir vendo televisão programada, comer pizza fria no meio da noite, jiló cru ou cozido no feijão, comer arroz com carne moída, ficar nu em casa, ler um bom livro . Percebo que as coisas que mais gosto de fazer são as mais simples e bestas que existem”.
...Léster entendeu o que eu quis dizer, e sentenciou com um olhar fixo em mim: “ Vocês estão no mato sem cachorro”. Abaixou a cabeça, ponderou, balançou o rabinho bem curto que carrega com pose, lambeu o pinto como se estivesse tragando um cigarro, me olhou novamente e disse: “Existe uma dificuldade enorme em ser humano, ter cérebro que faz cálculos e percebe cores, ter um coração que ama, carregar o mundo em cima de suas costas. Amigo, por que você não pode se deprimir nunca? Por que tem que ser sempre um herói? Carregar sempre um sorriso grandão no rosto, mesmo que falso? Cara, você faz parte de uma roda gigante universal. É uma bosta viver assim, alguém peida na Ásia e a Bolsa de Valores despenca aqui. Vocês andam em círculos todo o tempo. Falam de Direitos Humanos, Constitucionais e elegem representantes que proscrevem seus direitos. Justificam o dinheiro como fonte de felicidade e quando o tem estão profundamente infelizes, justificam a paz matando um monte de gente, querem ficar famosos e depois reclamam da falta de privacidade. E no fim de todo esse contra-senso sempre vai existir uma pergunta honesta: pra quê tudo isso? Por que se exige tanto de você? Olhe, quando você morrer, o que vai levar de fato?”
...Nesta altura dos delírios da minha mente eu havia compreendido que Léster tinha uma grande afeição por mim, como meus amigos que amo. Senti saudade de conversar com meu amigo Expedito. Saudade de quando ficávamos lavando o Fiat Panorama branco domingo à tarde, vendo as meninas passando em nossa frente como semi-deusas, mulheres inatingíveis, nos desafiando a chegarmos em casa e não nos entregarmos ao vício solitário; segundo a igreja que freqüentávamos, isso era um pecado terrível (...). Saudade de quando ficávamos debruçados, viajando, patinando em cima da obra de Nietzsche. Saudade do nosso fascínio por Descartes, Rubem Alves e nossas conjeturas sobre nossa realidade estapafúrdia. Aquilo era um ópio, um anestésico potente em nossas alminhas pobres e felizes.
...O evento com Léster me mostrou que tenho andado meio inseguro, meio decadente, sem produzir, à beira do precipício da desesperança, decepcionado com a humanidade. Estou mesmo inquieto com o que temos feito com nossas horas, com o meio ambiente, com as pessoas que amamos, com nossos corpos cansados, com nossos ideais empoeirados na estante do quarto, com nossa integridade. Léster me fez pensar que agora não tem mais jeito, já que nascemos humanos, com a estupidez cegando nossa sensatez, deve-se prestar atenção em como temos celebrado o passar dos dias.
Allê Barbosa
e-mail: alledimitri@hotmail.com
*Esta crônica publiquei em Agosto de 2005 e trata-se de uma versão revisada.
...Léster entendeu o que eu quis dizer, e sentenciou com um olhar fixo em mim: “ Vocês estão no mato sem cachorro”. Abaixou a cabeça, ponderou, balançou o rabinho bem curto que carrega com pose, lambeu o pinto como se estivesse tragando um cigarro, me olhou novamente e disse: “Existe uma dificuldade enorme em ser humano, ter cérebro que faz cálculos e percebe cores, ter um coração que ama, carregar o mundo em cima de suas costas. Amigo, por que você não pode se deprimir nunca? Por que tem que ser sempre um herói? Carregar sempre um sorriso grandão no rosto, mesmo que falso? Cara, você faz parte de uma roda gigante universal. É uma bosta viver assim, alguém peida na Ásia e a Bolsa de Valores despenca aqui. Vocês andam em círculos todo o tempo. Falam de Direitos Humanos, Constitucionais e elegem representantes que proscrevem seus direitos. Justificam o dinheiro como fonte de felicidade e quando o tem estão profundamente infelizes, justificam a paz matando um monte de gente, querem ficar famosos e depois reclamam da falta de privacidade. E no fim de todo esse contra-senso sempre vai existir uma pergunta honesta: pra quê tudo isso? Por que se exige tanto de você? Olhe, quando você morrer, o que vai levar de fato?”
...Nesta altura dos delírios da minha mente eu havia compreendido que Léster tinha uma grande afeição por mim, como meus amigos que amo. Senti saudade de conversar com meu amigo Expedito. Saudade de quando ficávamos lavando o Fiat Panorama branco domingo à tarde, vendo as meninas passando em nossa frente como semi-deusas, mulheres inatingíveis, nos desafiando a chegarmos em casa e não nos entregarmos ao vício solitário; segundo a igreja que freqüentávamos, isso era um pecado terrível (...). Saudade de quando ficávamos debruçados, viajando, patinando em cima da obra de Nietzsche. Saudade do nosso fascínio por Descartes, Rubem Alves e nossas conjeturas sobre nossa realidade estapafúrdia. Aquilo era um ópio, um anestésico potente em nossas alminhas pobres e felizes.
...O evento com Léster me mostrou que tenho andado meio inseguro, meio decadente, sem produzir, à beira do precipício da desesperança, decepcionado com a humanidade. Estou mesmo inquieto com o que temos feito com nossas horas, com o meio ambiente, com as pessoas que amamos, com nossos corpos cansados, com nossos ideais empoeirados na estante do quarto, com nossa integridade. Léster me fez pensar que agora não tem mais jeito, já que nascemos humanos, com a estupidez cegando nossa sensatez, deve-se prestar atenção em como temos celebrado o passar dos dias.
Allê Barbosa
e-mail: alledimitri@hotmail.com
*Esta crônica publiquei em Agosto de 2005 e trata-se de uma versão revisada.
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