Longo e saboroso beijo
A boca é solidão sempre que sai da trilha das palavras. Se existisse amizade entre a boca e as palavras haveria também um baú em nosso corpo para ser enchido de palavras, como as cartas de amor eram guardadas antes. A boca é só um meio de transporte de palavras, uma repartição pública com palavras sentadinhas esperando sua vez de serem atendidas. A boca é uma passagem, a porta de saída dos pensamentos mais belos e às vezes nem tanto. É por esta porta que estes pensamentos saem e grudam nas pessoas. A boca é um recipiente onde acontece a primeira mistura de um corpo ao outro, onde de fato existe troca concreta.
Um beijo também pode ser muito assustador. Sempre fui muito tímido. Acho que já era a veia artística mostrando suas unhas. Pensar em como seria meu primeiro beijo me deixava tonto, sem conforto nos olhos. Nessa ocasião eu tinha um colega que era um terrorista sentimental, vivia me perguntando coisas que eu nunca sabia responder: “Rapaz, quem é que chupa a língua primeiro, o homem ou a mulher? E o homem inclina a cabeça pra que lado, direito ou esquerdo?” Se ele que já tinha beijado a Renata não sabia, imagine eu? Estas perguntas me tiravam o sono toda noite.
Ensaiei bastante com técnicas arrojadas que incluíam dorso da minha mão, maçã, espelho, etc. Num sábado à noite conheci uma graça de menina chamada Marta. Ela visitava a minha cidade. Conversamos por umas três horas com minha timidez dando o tom da conversa... e milagrosamente nos beijamos. Ela só apareceu em minha vida para me mostrar a magia do primeiro beijo. Fiz tudo direitinho, parecia uma música bem ensaiada tocada pela primeira vez. Foi meu último dia sem saber a textura de uma boca, o gosto da língua e como os lábios podem dar prazer. Portanto, foi também a primeira vez que me senti excitado com uma mulher real, acabava ali a ilusão do contrabando de revistas e o medo da responsabilidade do prazer real. Na noite em questão voltei para minha casa sentindo ainda o cheiro da saliva dela em meus lábios e me sentindo o menino mais feliz do mundo. No dia seguinte ela foi embora e nunca mais a vi. Talvez, ela nunca tenha imaginado o significado que aquele beijo teve pra mim. Um beijo deveria sempre se parecer com o primeiro beijo de nossas vidas. Esta é a proposta do amor: beijar sempre como se fosse a primeira vez.
Tudo começa num beijo. Quando o beijo é ruim, absolutamente nada justifica outra aproximação, nem a beleza das palavras que essa boca transporta. Aconteceu no mês seguinte ao meu primeiro beijo. Eu ainda estava todo empolgado com o beijo da Marta, mas queria saber como eram outras bocas. Tinha uma menina metida que escrevia versos bregas em meu caderno da escola. Ela era apaixonada por mim, eu nem tanto, mas numa quarta-feira à noite resolvi beijá-la assim mesmo. Aquela experiência foi uma guerra nuclear pra mim. Num golpe violento ela me imobilizou como a aranha imobiliza a presa e foi enfiando a língua dela em minha garganta, num estilo liquidificador trapezoidal. Aquela língua de tamanduá bandeira era terrível, me senti uma batatinha num triturador de legumes. Quando terminou aquele suplício, me despedi e fui triste para minha casa com saudade da Marta e com uma certeza: a boca daquela menina não tinha nada a ver comigo e eu passaria o restante do ano fugindo dela.
A boca é sexo, a língua é poesia úmida. É importante saber que um beijo não começa na boca, começa com o magnetismo dos olhos. Os beijos não foram feitos exclusivamente para a boca, cada parte do corpo anseia pelo toque dos lábios em algum momento. Consigo pensar no pescoço, nuca, nos pés, nas coxas, nas mãos, na testa, nos olhos, no queixo, na bochecha, nos seios, umbigo, nariz, ouvido, atrás do joelho, virilha (passar a língua na virilha é muito bom), nádegas, etc... Mas é na boca que o beijo se completa, é onde a fotografia se revela. Beijar é tentar decifrar a mensagem do conteúdo humano, achar a parte que nos completa, que vaga por aí, também à nossa procura. Quando o beijo é a chave certa que abre a nossa boca, existe também a sensação de que esta chave é amiga. A chave que um beijo traz não apenas abre uma boca, abre um mar de possibilidades, uma vida, destranca as gavetas secretas de nossos armários. Nós somos a oficina dos beijos, fabricamos e fazemos manutenção nos beijos.
Sempre tenha um mantra na cabeça: uma vida sem beijos é uma vida sem açúcar. Beije a boca de quem realmente você quer beijar, saiba achar os dentes certos que vão tocar sua pele de um jeito especial. Um beijo honesto é o olho que lhe enxerga de dentro pra fora. Queira o melhor beijo já fabricado por aquela boca...
Allê Barbosa
e-mail: alledimitri@hotmail.com
07 de Janeiro de 2007
8 Comentários:
Às 10:45 PM , Anônimo disse...
Allê! Que maravilha de texto, vc esta escrevendo cada dia melhor, suas crônicas são perfeitas, profundas... Parabéns!
Às 11:43 AM , Helena Meyer disse...
Amor, isso é lindo: "Beijar é tentar decifrar a mensagem do conteúdo humano, achar a parte que nos completa, que vaga por aí, também à nossa procura. Quando o beijo é a chave certa que abre a nossa boca, existe também a sensação de que esta chave é amiga. A chave que um beijo traz não apenas abre uma boca, abre um mar de possibilidades, uma vida, destranca as gavetas secretas de nossos armários."
Incrível como vc consegue falar tão bem sobre uma coisa tào simples e visceral como o beijo... Amei!
Às 5:42 PM , Anônimo disse...
Parabêns por conseguir se expressar tão bem.
Vc é um verdadeiro artista,sua sensibilidade demostra isso.
sucessso sempreeee
suas crônicas são lindas, definem coisas q m pareciam indescritíveis ;p
Às 8:57 PM , Anônimo disse...
"- Mas é na boca que o beijo se completa, é onde a fotografia se revela. Beijar é tentar decifrar a mensagem do conteúdo humano, achar a parte que nos completa".
PERFEITO!!
Cara, gostei muito do teu texto! Cada vez me surpreendo ainda mais com tuas "idéias malucas", porém diretas e "certeiras"!
Legal re-lembrar estas histórias!
Lembro-me do dia em que você ia dar uma bala "Ice kiss" para uma vizinha minha, lembra? Na época as balas tinham aquelas frases: "Me dê um beijo", Tô afim de você...
Só não lembro como terminou a história! hahahaha!!
Saudades!
Voltando ao texto, achei brilhante!
Deixo minha admiração e apreço por teu talento!
Um grande Abraço
Sócrates expressava seu amor e amizade de diversas formas. No Lísis, de Platão, ele declara que em toda a sua vida, sempre teve um ardente desejo de amizade, mais que qualquer outra coisa no mundo. No Fedro, Sócrates é obrigado a fazer um discurso contra o amor que considera vergonhoso, mas quando seu dáimon interior não o deixa parar por aí, ele pronuncia um discurso em louvor do verdadeiro amor, finalizando com uma prece em agradecimento pela arte do amor que lhe foi concedida. (Platão, Fedro)
Às 9:29 PM , Anônimo disse...
Muito bom. O melhor de tudo é que eu me engasguei de rir com a parte das perguntas do teu amigo. Abraço!
Às 12:20 AM , Anônimo disse...
Allê Adorei teu blog..
Seriu msm..
=]
Bjus
:**
Japinha
Às 6:57 AM , Mariza disse...
Menino,vc escreve muito bem,meus parabéns!!É uma delicia ler e ao mesmo tempo que leio vc me faz pensar,buscando lembranças guardada em alguma gaveta do meu ser!
Mais uma vez meus parabéns!!
Às 8:41 PM , Silmara Franco disse...
Mas isto aqui é uma ode ao beijo, rapaz!
Bonito, bonito e bonito.
Ando precisando recitar mais esse mantra.
Um beijo para você (ops).
Silmara Franco
www.fiodameada.wordpress.com
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