Mordida de ciúme
Ciúme... Dizem que em doses a contar gotas é bom para os casais. Se o seu relacionamento fosse uma maçã, e o ciúme fossem os dentes que a mordem, esta sua maçã ainda teria a imagem polida e brilhante de uma maçã virgem, ou já teria sido devorada por seu parceiro? Dizem também que o ciúme é despertado em você, não apenas pela sua própria necessidade de por GPS nos olhos do seu parceiro, mas também pela conduta dele... Vamos pensar um pouco!
Não podemos negar o fato de naturalmente sentirmos ciúme, é como a voz humana ecoando e cortando o ar à nossa volta. Nascemos querendo ser donos de todas as coisas que nos interessam; dos amiguinhos, dos pais, dos irmãos, das chupetas, dos brinquedos, dos nossos pequenos territórios. Talvez seja uma fuga ilusória para aplacar a verdade: nunca fomos e nem seremos donos de nada, nem nós mesmos temos a nós. Depois de adultos, alguma convenção ensina que esse desejo desenfreado de possuir a alma alheia tem que continuar, principalmente dentro dos relacionamentos, como se o ciúme gerasse alguma verdade capaz de fazer com que a outra pessoa, exatamente pelo ciúme, permaneça junto de nós.
O ciumento desconsidera a individualidade, na verdade, ela é a pedra que atrapalha o andar dele pelas ruas das suposições tolas. O ciúme cria uma redoma fantasmagórica que impede que o ar renovado entre pela janela da relação, é esse ar que oxigena o sangue do casal e traz renovo. Eu penso no ciúme como um organismo semelhante ao fungo, que vai se desenvolvendo, ganhando corpo e tamanho até evoluir para uma doença que vai tirar toda a sua sensibilidade, extraindo sua capacidade de diferenciar o que é real do que não é. Doente, pode ser que numa questão de tempo seu relacionamento saudável morra à míngua, pesando poucos quilos. As pessoas ciumentas partem em defesa do ciúme dizendo: “Ah, mas um pouquinho de ciúme é bom, pra manter a chama acesa, é um cuidado bem vindo”. Seria uma boa justificativa se o ciúme fosse bom em si, se dele viessem coisas boas ao contrário das intermináveis brigas. Ao invés de cultivar mais um pé de ciúme na plantação, se pergunte quem sai lucrando com seu ciúme, e esta pergunta lhe leva a outra: o que esta pessoa que divide sua vida comigo espera de mim? As duas respostas seriam um farol norteador da relação, um caminho virgem de boas possibilidades. O fato é que eu nunca ouvi alguém dizer: “Droga, acabei o meu namoro porque ela não sentia ciúme de mim”, mas já ouvi dezenas de pessoas dizendo que terminaram porque o outro era muito ciumento. Talvez, no caso de ouvir algo do tipo “Ela não sente ciúme de mim”, provavelmente esta pessoa tenha um prazer mórbido quando o parceiro arma barraco, faz cena e estapeia qualquer um por ela, esse desvio faz ela pensar que isso é ser amada, que o outro se importa com ela. Não posso considerar esse comportamento saudável.
As pessoas sentem ciúme porque amam. Então, vamos pensar um pouco no amor, o que é o amor? Se existisse apenas uma resposta ficaria tudo resolvido, portanto, desconfie quando alguém disser que sabe exatamente o que é o amor. Eu poderia dizer que o amor não pode ser pintado num quadro, poderia dizer que não existe tinta que o retrate com fidelidade, e isso encerraria a questão. Mas opostamente a isso, eu poderia também pensar que o amor é, sim, algo definível por tintas, e que essas tintas lhe criam texturas, o colorem com infinitas possibilidades e profundidades. Entretanto, independente do que seja amor pra você, e do paradoxo em que ele está alicerçado, ele perde o sentido e efeito reparador diante do ciúme. Dentro de uma dessas possibilidades, penso no amor como o canto, a transformação da voz em beleza. Cantar é uma invenção humana, um gás hipnótico, uma grande sereia que encanta os nossos ouvidos. Entretanto, o canto é antinatural, é como respirar com equipamentos de mergulho em baixo d’água. A voz se desenvolveu para falar, isso graças a um complexo emaranhado de músculos, articuladores, cartilagens e tubos. Em algum momento esse aparelho da voz precisou ser domesticado para que acontecesse o canto, o lúdico da vida, a poesia em música. Posso pensar no amor com esse canto, essa maravilhosa invenção humana, essa distração para nossos corpos e mentes. Então, de igual modo, posso pensar na voz como sendo o ciúme, a parte natural da emissão da fala. Naturalmente, o ciúme se traduz em medo de perder quem tanto a gente ama, medo da rejeição. O ser humano nunca terá conforto diante da rejeição. Todavia, esse amor, como o canto, não deveria aplacar toda essa sensação de insegurança dos casais? Não foi para isso que ele foi criado? Se eu amo, logo tenho as ferramentas pra engolir esse ciúme e ele não me fará mal. É atrativo pensar que o amor poderia ser uma invenção da sociedade, um jeito de transportar o individuo para um ambiente menos nocivo à individualidade, uma moeda valiosa que se contrapõe com o ciúme, que é aqui a natureza humana, de ser dono das coisas, um instinto animal.
Quando o ciúme se instala entre duas pessoas, nada fica como era, pois ele rouba alguma coisa importante que mantinha o fluxo de informações funcionando. O ciúme é um artista incapaz de criar algo que seja realmente bom, uma música que fale ao coração, algo que seja prazeroso, que faça a relação sair ganhando. Nos casos mais extraordinários, ele nasce quase sempre de uma situação irracional, de um olhar que não existiu, de uma estória criada em minutos com todos os detalhes, personagens e significados. O ciumento se coloca como o delegado da cidade, o segurança da relação. A relação do ciumento é como uma boate em que ele fica na porta dizendo quem entra, protegendo a integridade do seu amor. Intervir numa situação em que um copo de ciúme foi destilado é acreditar que seu amor, o objeto do ciúme, é uma “coisa” que não sabe se defender, que depende de você para tal. Sentir ciúme de coisas é estranho, mas até compreensível, ora, as coisas não sabem se defender de terceiros mal intencionados, por isso botamos senhas, alarme nas casas, no carro. A ideia de que somos donos das pessoas só não é mais ridícula do que a ideia de que precisamos ter um dono para ser feliz.
Criamos uma sociedade em que as pessoas são dependentes de máquinas e carentes de pessoas. Cada vez mais estamos nos isolando dentro dos redutos de fibra ótica e andando como zumbis nas ruas reais. Sinto que existe uma necessidade urgente de contato, de afeto no aspecto real. O ideal sobre alguém estar junto de você dividindo a vida, os pensamentos, o copinho da escova de dente, às vezes repousa num cenário melancólico. Neste mesmo cenário está a certeza de precisar que alguém sinta ciúme de você para saciar sua necessidade de se sentir amado e importante, desejado e cortejado. É um descompasso racional se sentir dono de alguém para ter seu ego alimentado, seu desejo de posse nutrido. E tudo no fim das coisas se resume a isso: a posse. Quem é dono tem poder sobre o objeto ou a pessoa e pode fazer o que bem entender. Não existe nada mais sedutor do que o poder, e uma relação em que as ligações estão norteadas pelo poder que um tem sobre o outro, é quase impossível dar certo. Na falta de uma explicação melhor, equivocadamente, o ciúme que mantém as pessoas juntas é o mesmo que as separam. Quando o equívoco começa ser algo natural do dia a dia, o inequívoco passa a ser uma estranha possibilidade. É impossível não sentir ciúme, mas que seja precisamente pelos motivos certos.
Allê Barbosa
04 de Outubro de 2011
3 Comentários:
Às 11:31 AM , Helena Meyer disse...
Vc disse: "é impossível não sentir ciume", e eu concordo - ele sempre aparece, de uma maneira ou de outra, por essa ou aquela razão. O grande embaraço, na verdade, é o que fazer com ele... Não acho que o ciume aqueça a relação - brigar é sempre um saco! E se o ciume é exagerado, se torna persecutório e injusto, e o resultado é que o outro desiste de ser leal, de ser sincero: "Contar isso pra que, se eu sei que vou ser massacrado?" E aí, os não ditos se tornam a tônica da relação.
Excelente reflexão, amor...Beijo!
Às 4:14 PM , Anônimo disse...
Tem um lance de curtição do ciúme. Algumas pessoas se apegam demasiadamente ao ciúme.
O ciumento é um torturador.
Se você quer torturar uma pessoa com ciúme, você tem de ser um santo; somente então pode agir se achando o mais correto dos mortais. O ciumento vira um santo. Essa bondade começa a criar culpa naqueles que se permitem errar, olhar do lado, perceber outras coisas, outras pessoas, mesmo que nem tenham inicialmente a pretensão de trair. Esse tipo de santidade é algo diabólico. A bondade, a lealdade, a pureza do ciumento, incomodam e aterrorizam.
Minha vontade, quando me deparo com a santidade “ ciumentalista” (RS), é trair, trair, trair... Depois sentir medo, raiva, dor, me culpar, ter pesadelos, compaixão, piedade... Ser alguém desprezível, com todo prazer.
Allê Barbosa acompanho seu blog, gosto das suas crônicas, mas esse texto me pareceu comum, politicamente correto, demasiadamente cuidadoso, direcionado e até mesmo chato. Desculpa.
Márcia.
Às 5:17 PM , Anônimo disse...
Como sempre uma bela reflexão quanto ao lado que mais afeta as mulheres. Estou esperando a publicação do seu futuro livro, tô longe mais não esqueço de um amigo.
Abraço braquinha.
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